A esquizofrenia que tornou viral o chapéu que Pharrell Williams usou durante a 56ª edição do Grammy é um mal que, para os mais atentos, vem para o bem. Calejado, a estas bobeiras o ouvinte começa a desperdiçar menos dedicação. Quem se atentou a isso conseguiu captar os últimos lançamentos de Curumin, Metá Metá, Emicida, Rodrigo Campos, Tulipa Ruiz, Criolo, Passo Torto como exclusivos de uma música popular possível só no Brasil. “Encarnado”, de Juçara Marçal, é mais um da turma: por amizade contemporânea e também por méritos de sobra na abordagem de uma estética que vai se tornando peculiar entre os membros da caxabaxa paulistana.

Antes de “Encarnado”, eu preciso te relembrar alguns tópicos. O primeiro é “Trovoa” (assista), do debute do trio que Juçara compõe junto com Thiago França e Kiko Dinucci. O segundo, é o fato de a cantora ser um ícone atual solitário de uma interpretação na MPB que evoca raiva, desilusão, ironia e dor – por isso, relembremos “Jardim Japão” (ouça), faixa de “Bahia Fantástica”, segundo álbum de Rodrigo Campos. O cantor e compositor assina, junto com Dinucci, as guitarras do disco de Juçara e sua presença aqui cria um link entre os dois álbuns pela temática da morte.

Insisto: um intricamento de ideia, um zeitgeist ou uma coincidência fodida é essencial para que discos valorizem-se frente a uma esperada maré de sorte mercadológica. Esta última nunca virá mais aqui no Brasil – ou sendo menos pessimista, não nos próximos anos (o preço de um vinil dos caras é R$80, ninguém ouve mais CD e quem baixa mp3 nem sempre comove o contratante) e não há melhor tática do que produzir espontaneamente álbuns incríveis em pequeno espaço de tempo e em locais geograficamente aproximados. Menos despesas com viagens, o SESC taí e depois ainda rola um bar com a galera. Chega a soar pequeno diante da vocação de todos os álbuns e artistas mencionados.

Dito isto, aceitar as guitarras e cavaquinhos da base estética de “Passo Elétrico” ou “Bahia Fantástica” é um passo para não menosprezar “Encarnado” como apenas mais um álbum construído com aquilo que pertence aos conhecidos envolvidos. Não à toa, por culpa de Juçara, é um registro mais proeminente que a versão elétrica do Passo Torto, sendo mais reto, mais conciso. “Passo Elétrico” é o sequestrador; “Encarnado” é o matador de aluguel (“Bahia Fantástica”, o ícone dessa saga crua e urbana, é a comunhão de todos esses espíritos – do aviãozinho ao gerente da boca). E, reforçando um não apenas simples empréstimo de tempo e amizade, Kiko Dinucci e Rodrigo Campos dedicam a “Encarnado” possibilidades que, se cansam nas escolhas dos timbres (demasiadamente usados nos outros registros), são, ao mesmo tempo, pouco hesitantes e maduros em quase todas as faixas do álbum. O amigo Thiago França, no saxofone, e Thomas Rohrer, na rabeca, completam. Qual é o nome que se dá a uma reunião de amigos em que é difícil enxergar preguiça até mesmo quando algo soa já soado?

O nome disso é cuidado. Juçara é interprete: vai de Tom Zé a Douglas Germano. Do baiano escolheu uma faixa recentíssima (“Não tenha ódio no verão”); do compositor paulistano que já emprestou tantos hits ao Metá Metá, a cantora resgatou “Damião” (ouça a original), do maravilhoso e obscuro álbum “Orí” (baixe no site de Germano). O nome disso também é insistência. Marçal conduz as canções de 2014 com a mesma vitalidade do bis dos shows do Metá Metá, normalmente encerrados com “Obá Iná”; poucas, no entanto, induzem-nos a pular e ficar maluco como nos presume a canção de 2011. Por isso, mais um mérito: não há artifício que não seja a condução da cantora e dos riffs em mantra. Não há embalo; é um disco pouco empolgante para o ouvinte radiofônico. Não há uma presença forte da percussão em presença explícita; é um álbum pouco interessante para quem não consegue se deixar levar pela percussão de outros instrumentos que não os propriamente de percussão (guitarra, rabeca, cavaquinho, todos são percussivos aqui).

“Velho Amarelo” é a música mais perigosa de “Encarnado”. Evoca imediatamente a “Passo Elétrico” e é preciso um esforço (que não tive) para não emendar a percepção à decepção. É quando o conjunto funcionando em orquestra te arrebata que isto se desfaz: o parabelo, a menina dos seus olhos, a piedade que não há e o fim: o refrão é sensacional dizendo a escolha do leito de morte. “Quero morrer num dia breve, quero morrer num dia azul, quero morrer na América do Sul”, canta-se. Hoje não estamos morrendo, diz a canção, já que a razão está sendo comida por uma chaga. Que letra de Rodrigo Campos, talvez a sua melhor desde “Jardim Japão”.

Juçara Marçal traz Itamar Assumpção novamente pra roda. O grupo todo é muito fã do negro da lira. Já havia, mais recentemente, “Tristeza Não” e “Más Línguas” e “Ir Pra Berlim” nos shows anteriores ao segundo álbum do Metá Metá. Agora, é “E O Quico?”, de 1983. Paralelamente, “Encarnado” traz à tona um dos compositores mais interessantes – e que ninguém ouve, ninguém vê -: Siba. É dele “A Velha Da Capa Preta”, gravada originalmente no excepcional “Toda Vez Que Eu Dou Um Passo o Mundo Sai do Lugar”, com a Fuloresta, de 2007. Novamente, isso é cuidado — muito mais do que o tecnológico ostentando pela nova geração do pop brasileiro e para a qual já expus minha frustração neste artigo. O funeral de “Ciranda do Aborto”, de Dinucci, precisa ser o nosso Arcade Fire.

O que está em jogo em “Encarnado” é a canção. Coincidentemente, aquela que diziam que acabou. Coincidentemente, quem dizia isso estava dentro de gravadoras. Que, coincidentemente, são as que contratam todos os tecladinhos espertos da nova safra da música brasileira. A companhia montada em um cavalo meio esquizofrênico vindo de São Paulo vai vendendo, de mão em mão, uma espécie de dor que muitas pessoas não estão dispostas a ouvir. É a dor de quem ainda não tem casa própria, torce para que toda uma bolha imobiliária exploda só pela raiva, apoia a violência pra ver no que vai dar e liga essa guitarra aí. Bem diferente do arpoador chato, preguiçoso e de um mimimi insuportável que o Rio de Janeiro está tentando nos vender (e ninguém compra, a não ser os meus pares jornalísticos). Curiosidade: Juçara é carioca fluminense. “Encarnado” é mais um pra abrilhantar um box que nunca vai ser vendido, mas que tem causado um impacto devastador desde o final da primeira década deste século.

Apesar de já estarmos morrendo, queremos morrer só em breve. “Encarnado” é um antítodo contra quem quer nos matar antes.